ROUBANDO NOS DADOS?
Alguns Mestres se frustram com
relação ao aleatório em jogos de RPG (o famoso "dice fudging"), e
como tratamos neste blog de D&D, em jogos de Dungeon and Dragons. Alguns
acreditam, por exemplo, que a morte de um personagem, quando não é ÉPICA, é algo desapontador, decepcionante. E estranhamente escolhem jogos, como o D&D, onde isso é
parte do jogo. Estranho porque D&D tem isso em sua essência. É um jogo onde
o fator aleatório é importante. O que esses Mestres fazem? Torturam os dados
para que eles contem a história que eles querem. Não importa se em uma aventura
linear ou em uma aventura aberta, este Mestre tira o poder de decisão dos
jogadores (que decidiram se arriscar em algo) para decidir pelo sucesso ou
falha. Parece que algo acaba acometendo esses DMs como uma síndrome de
conhecimento maior, onde eles sabem o que é melhor, e eles são seduzidos a
determinar que sua criatura não morra em determinada cena, ou que o jogador
consiga derrotá-la em outra, ao seu gosto. Geralmente, os jogadores que gastaram recursos de
seus personagens para tentar vencer o desafio não sabiam que este desafio tinha
um "timer" que faria com que eles tivessem sucesso total, parcial ou
nenhum "independentemente do que fizessem", pois, os pontos de vida e demais
características defensivas da criatura acabavam por se moldar conforme o desejo
de apenas uma pessoa na mesa - O MESTRE. Quando percebem que essa é a experiência que
estão tendo, artificial e conduzida, muitos jogadores tendem a se frustrar. Se
não percebem, o Mestre se anima e acredita ter executado com sucesso o engodo.
E o jogador enganado sai da sessão feliz, como um cônjuge traído que ignora o
que acontece em sua relação quando ele não vê. O pacto de confiança na mesa não
existe, mas os jogadores ainda não sabem.
Há uma série de problemas com esse tipo de conduta:
- Se o Mestre decide qual o momento da morte de uma criatura, na prática ele decide quem deu o golpe final. Ou seja, ele pode passar uma impressão de favoritismo, mesmo que não haja (ou que ele não perceba ou saiba).
- Por que fazer um adivinho, um encantador ou um ilusionista se quando for importante essas habilidades falharão por não gerarem o momento "épico" esperado pelo Mestre?
- Em que parte entra a colaboração dos jogadores com a história se o Mestre pode influenciar em todas as rolagens, inclusive nas rolagens sociais, nas de exploração...?
Existem algumas formas de se
reverter um tanto do efeito aleatório sem ser enganar os jogadores. E aqui vão
algumas sugestões para que esses Mestres tenham opções melhores do que
trapacear.
1 - ESCOLHA OUTRO SISTEMA!
Há mais do que só D&D no
cenário de jogos de RPG. BEM MAIS! Talvez você tenha começado a jogar RPG por
este sistema e se sinta à vontade nele. É compreensível. Mas saia de sua zona
de conforto! Há jogos em que os jogadores poderão usar recursos para evitar as
falhas, seja gastando um ponto de experiência, vontade, sorte... e isso
permitirá refazer a rolagem ou transformar a falha em um acerto simples. Em outros
jogos permitem que o jogador escolha o que usar em termos numéricos. Algo como
se ele tivesse rolado o D20 20 vezes antes da sessão e fosse escolhendo o que
usar durante o jogo. Há também jogos em que os jogadores possuem recursos de
rerrolagem ou recursos para sofrer menos dano. O jogador possui nesses jogos
agência sobre o que acontece, e isso é melhor do que um Mestre que é obrigado a
corrigir o rumo dos eventos por mal planejamento ou por sorte ou azar nos
dados.
2 - DÊ AGÊNCIA AOS JOGADORES
SOBRE SEUS DESTINOS!
Este é outro ponto. Roubar nos
dados não dá agência aos jogadores. Eles são passivos em meio ao que afeta o
jogo. Pode parecer emocionante, mas é um carrossel. O jogador está em cima do
cavalinho, subindo e descendo, dando a volta no circuito, sem surpresas, mesmo
que ele não saiba e não perceba que não há nada que ele possa de fato fazer.
Como dar agência aos jogadores? Como esse é um tema sobre mecânica e sistema,
não vou falar sobre dar agência no enredo. Isso pode ser discutido em outro
post, se for da vontade dos visitantes do blog. São opções mecânicas melhores
do que roubar atrás da divisória do Mestre, nos dados ou nas estatísticas do
jogo:
A - O Talento Sorte
O Talento Sorte é melhor do que
todos os outros talentos descritos no livro e vários Mestres o proíbem.
Inclusive Mestres que roubam nos dados o proíbem. Não faça isso! Se o seu
problema é com os valores aleatórios, dê o talento a TODOS OS PERSONAGENS,
gratuitamente, no primeiro nível! Mais do que isso, se você conseguir se
libertar de rolar os dados atrás da divisória (afinal, você deixou o vício de
roubar nos dados!), você pode dar a você, Mestre, também o talento Sorte,
podendo usar as rerrolagens entre todos os PdMs durante a sessão (talvez o
dobro de vezes, se você achar realmente necessário, mas acredito que uma só vez
é o suficiente). Assim, quando os personagens errarem, os jogadores podem
escolher rerrolar. OS JOGADORES fazem a escolha. Eles têm a agência de
"roubar" nos dados! Quando eles decidirem e não quando você decidir.
Liberte-se de controlar tudo!
B - Pontos de Inspiração
Pontos de Inspiração, em geral,
são usados raramente e de forma meio despreocupada pelos Mestres e jogadores. Transforme
o sistema em algo maior. Permita que jogadores que se dedicam a interpretar (lembrando
que interpretar não é necessariamente representar) seus personagens com seus
objetivos, falhas e peculiaridades recebam algo melhor! Faça com que pontos de
inspiração seja uma mecânica que permita transformar uma falha em um acerto, ou
um acerto em um acerto crítico (de qualquer personagem ou criatura na cena)! E
seja mais generoso com os pontos. Talvez todos sempre ganhem um ponto no começo
de cada sessão. Ou os pontos possam ser acumulados. Faça desse recurso algo
maior do que é, resolvendo seu problema com a aleatoriedade do sistema sem que
você tenha que decidir tudo.
C − Pontos Heroicos
A regra opcional de Pontos Heroicos
(DMG 264), que de certa forma substitui uma antiga regra de outras edições que
traziam pontos de ação, garante a cada personagem um total de 5 pontos + metade
do nível do personagem de pontos heroicos a cada nível (sendo 5 no nível 1) e
que zeram ao subir de nível, ou seja, não são somados aos novos pontos ganhos e
sim substituídos. Esses pontos permitem ao personagem, ao serem gastos,
adicionar 1d6 a uma rolagem ou substituir uma falha num teste de morte por um
sucesso. Mais uma opção onde a agência é dos jogadores!
D - Pontos Heroicos e Vilanescos
Cada personagem recebe 1 ponto heroico
quando sobe de nível para cada dois níveis que tiver, mínimo de 1 (ou seja,
começa com 1). Ele pode gastar apenas 1
ponto heroico por sessão e os pontos só são repostos ao subir de nível (e assim
como na opção anterior, pontos não gastos são perdidos ao subir de nível).
Esses pontos podem ser gastos para que o personagem deixe de rolar um D20 e
tire um 20 automático (mas que é apenas um sucesso automático em caso de
ataque, mas sem gerar qualquer efeito adicional, como um crítico), ou faz com
que o Mestre tire um 1 automático. Ao gastar esse ponto, o jogador passa esse
ponto para o Mestre. O Mestre então pode usá-lo como ponto vilanesco, que será
usado no máximo uma vez por encontro, permitindo que ele não role um dado e
"escolha um 20" em seu lugar (que, da mesma forma, não é um acerto
crítico). Pontos Vilanescos não usados no final da sessão são perdidos. Esse
tipo de regra é inspirada em outros jogos de RPG e também permite aos jogadores
decidir quando usarem seus recursos e influenciarem (ou descartarem, no caso) a
aleatoriedade dos dados.
3 - NÃO SEJA REFÉM DOS DADOS!
Mas espera... Não era para aceitar as rolagens? Agora o Mestre
deve roubar? Não! O ponto é outro: Não crie eventos em que a rolagem determina
todo o desencadear das ações e, sem ela, não há jogo. Não deixe a única
informação nas mãos de um único Personagem do Mestre que precisa ser convencido
com uma rolagem de Carisma a partilhar essa informação sem a qual a história
não acontece! Se criar essa opção, faça com que outras existam para que a
história siga, ou crie ainda outras vertentes da história, outros caminhos com
a consequência dessa falha diplomática, sem que isso determine o final do jogo.
Se a única forma de se passar pela sala é achando a porta secreta e eles
dependem de uma rolagem para encontrá-la, e não poderão refazer o teste, e se
falharem eles nem descobrem o restante da masmorra que era o que havia para
aquela sessão, então você se tornou refém de uma rolagem de dados. Se a única
forma de chegarem a um local essencial é acharem uma passagem, permita que haja
alguns meios de fazê-lo e crie consequências pro caso dos jogadores falharem de
todas as formas (e você não estiver usando nenhuma das opções sugeridas logo
acima, no ponto nº 2). Usar a mecânica de Pontos de Trama ("Plot
Points" no original) pode ser uma saída elegante e dinâmica para evitar
que você caia nessa armadilha.
O ponto desse texto é: não há
nenhum motivo justo para você trapacear nos dados! Liberte-se da obrigação de
controlar o jogo e permita que os jogadores decidam seu próprio destino. Use
seu escudo do Mestre apenas para consulta de tabelas, mapas ou estatísticas de
Personagens do Mestre, armadilhas e afins. Experimente começar uma nova mesa
com essa dinâmica. É provável que você nunca mais queira voltar ao seu antigo
vício!
Bons jogos!