Rosalvo
sabia que aquela não seria uma decisão simples. Seus amigos estavam a ponto de
serem condenados. Ele precisava mentir, mas sua fé era inabalável e Verita, a
deusa da verdade e da Justiça já havia decretado que a mentira era o caminho
para a danação. Rosalvo ficou calado e viu seus amigos serem acorrentados. Mais
tarde ele pensaria em um plano para salvá-los. Primeiro ele precisava pedir
perdão por seus pensamentos pecaminosos. Ele ousara pensar em mentir e sua
consciência não permitirá que ele pensasse em mais nada antes de se redimir.
Thor por Jason Nguyen |
DIVINDADES – O QUE VOCÊ PRECISA PARA CRIÁ-LAS?
Uma
questão recorrente em fóruns e grupos de RPG é sobre Mestres em dúvida, ao
criarem seus próprios mundos, em como criar seu próprio panteão. Eu sempre
tenho pra mim que é um gasto de energia absurdo criar seu próprio cenário,
desenvolver um panteão, cidades, nações, organizações... Quando há bons livros
básicos de cenários de D&D ou não onde você pode trabalhar em cima e
desenvolver criativamente sem precisar criar tudo do zero. Não acredito que o
uso de cenários prontos seja limitante de criatividade. Porém, há que se dizer
algo: parte da diversão de ser Mestre é o desenvolver e criar coisas. E muitos
Mestres parecem ter prazer em criar seus mundos. Se isso é parte do prazer do
Mestre, que ele crie, então. Não porque é mais fácil, pois definitivamente não
é (sem que algo vire um pastiche ruim e sofrível de Greyhawk, da Terra Média,
Dragonlance,
Etérnia ou o cenário que você quiser usar de exemplo). E então, além do
desenvolvimento da história do mundo, do que faz com que o cenário seja único,
do desenvolvimento das relações comerciais e geopolíticas, de como cada raça se
relaciona com a outra e consigo mesma, as relações dos monstros diversos de D&D
com o mundo, as peculiaridades desta ou daquela região, há a questão dos
deuses. E é sobre isso que falaremos aqui.
Alguns
dos pontos abordados neste texto também podem ser lidos no Livro do Mestre, entre
as páginas 10 e 13. Não deixe de conferir aquela leitura. Lá você verá dois
pontos não abordados neste texto, por exemplo, que são os cenários sem deuses, com
a “magia divina” existindo através de um mundo espiritual ou de filosofias. Lá também
aprofundará mais a questão do monoteísmo e do dualismo.
TEOLOGIA
A
primeira questão talvez seja: seu mundo é monoteísta, dualista, politeísta?
Quer dizer, quantos deuses existem? Um, dois ou muitos? O número de divindades afeta
a dinâmica do jogo. Um só deus criador de tudo e responsável por toda alegria e
por todo sofrimento do mundo gera um cenário completamente diferente do que
dois deuses, onde um é a luz e outro é a escuridão. Sigo nessa linha pois é a
mais tradicional no dualismo, com as duas divindades representando seus
opostos. E ambas perspectivas são bem diferentes da mais comum do D&D,
que é o politeísmo.
Ao
planejar um cenário monoteísta ou dualista, muita coisa precisará ser repensada
em termos de D&D. Em geral, os domínios listados no Livro do Jogador
são pensados como, de certa forma, uma das características de uma divindade. E
isso impacta todo o cenário. Num jogo com a mitologia nórdica, o deus das
tempestades seria algo na linha de Thor, bom e justo (quando inspirado no Thor
da Marvel, menos quando pensado na mitologia nórdica original). Já em Forgotten Realms, o deus da tempestade é
Talos, o destruidor. Um deus caótico e maligno, que representa as forças
destruidoras da natureza frente as civilizações. Num cenário monoteísta ou
dualista, a tempestade é uma força de ambos, de um deles, ou não existe? Esse é
um dos problemas quando se pensa em se distanciar do tradicional sistema
politeísta. O livro Deities & Demigods, da terceira edição de D&D,
traz algumas sugestões para esses sistemas, e se você pretende usar um deles,
vale a pena a leitura do seu primeiro capítulo.
Aliás, esse capítulo é bom o suficiente para valer a leitura mesmo para
qualquer Mestre que pretenda criar seu próprio Panteão. O nome do capítulo diz
muito: Divindades em seu jogo (traduzido livremente).
Outra
coisa é definir a magia no mundo. Quais magias realmente dependem das
divindades em seu cenário? É possível que os deuses simplesmente não tenham
nenhuma relação com a magia. Clérigos e demais classes conjuradoras não
dependem das divindades para conjurar magias. Talvez a magia tenha a ver com a
fé e não com os deuses, além das outras formas de tocar e moldar a trama
mágica. Mas também é possível que a trama tenha muita relação com as
divindades. Talvez druidas e guardiões precisem venerar deuses da natureza,
talvez paladinos façam seu juramento em um altar de um deus, talvez mesmo magos
e feiticeiros tenham que orar a uma divindade da magia para conseguir acessar a
trama.
Mais
uma questão: apenas as divindades concedem, se é que o fazem, a possibilidade
de conjurar magias (seja para clérigos, seja para algumas ou todas as classes
mágicas, fora os personagens não jogadores, que não possuem classe de
personagem) ou algumas criaturas extremamente poderosas também o fazem? Uma
coisa é o ensinamento do uso de mágica que essas criaturas passam aos bruxos
através de pactos. Mas eles conseguem conceder magia aos cultistas? Um cultista
consegue conjurar magia por causa da entidade a qual cultua, por causa de algum
tipo de pacto como o do bruxo, porque algum deus permite isso no lugar da
entidade ou porque a trama pode simplesmente ser tocada de alguma forma através
de um culto?
A
relação dos cultos também é importante. Afinal, príncipes demoníacos,
arquidiabos, a corte das fadas, os maiores arcontes, os antigos cósmicos e
demais seres incrivelmente poderosos do multiverso são capazes de ter clérigos?
Quais as suas relações com as divindades? Eles são algum tipo de deuses em seu
cenário? Se não são, desejam ser? São mais ou menos poderosos? Ou tão poderosos quanto?
Mais
questões: há apenas um panteão? Ou cada região possui seu panteão? Se existe
mais de um, como eles interagem entre si? Um devoto de uma entidade de uma
região pode viajar para outra região e manter sua capacidade de conjuração?
Criar
divindades significa pensar em termos de áreas de influência, também conhecidas
como portfólios. Como definir qual o portfólio de cada divindade, ou quais, já
que nada indica que uma divindade teria apenas uma área de influência? O mesmo
livro citado antes, Deities & Demigods, traz uma lista com diversos
portfólios possíveis. A verdade é isso depende exclusivamente da sua própria
imaginação. Vamos trazer parte dela aqui com mais de duzentos exemplos, com
algumas mudanças, aqui para alimentar um pouco a sua imaginação:
Veja
que mesmo no caso de um sistema tradicional politeísta, ainda há uma série de
perguntas simples que precisam ser respondidas. Depois de respondidas essas
questões de formas gerais, o próximo passo é responder as questões de cada
divindade em particular.
O PODER E A MORTALIDADE DAS DIVINDADES
Uma
questão importantíssima é saber o quão poderosos seus deuses serão. Eles são
imortais, todo poderosos? Serão apenas seres que atingiram um determinado nível
de poder muito grande, mas que podem ser mortos por alguém que atinge um grande
poder? Eles são onipotentes em seus reinos divinos nos planos ou em todo mundo?
Eles são oniscientes? Onipresentes? Usam avatares e outros tipos de
manifestação para saírem de seu reino divino?
Em
geral, em D&D, é pensado em deuses que são praticamente imortais,
mas que não são onipotentes, oniscientes ou onipresentes fora de seus reinos
mortais. Assim, eles podem basicamente tudo dentro de suas moradas nos planos,
mas não fora deles. Fora deles eles podem fazer pequenas interferências, muitas
vezes através de seus emissários e escolhidos, como seres extraplanares (anjos,
demônios, diabos, elementais...) e clérigos (e outras classes com origem divina
como o feiticeiro desta origem ou outras classes com relações com as
divindades, conforme o cenário). Muito raramente, um avatar, que é a
manifestação mais poderosa de uma divindade fora de seu reino, pode ser usado
em casos especiais. O que também envolve pactos entre os deuses, acordos ou
ordens de uma possível entidade acima dos deuses, como AO em Forgotten
Realms.
Alguns
sistemas dividem as divindades em níveis de poder. O Livro o Mestre traz a
seguinte classificação: Deuses Maiores, Deuses Menores e Quase Deuses. Mas você
pode querer algo mais amplo. No AD&D, tínhamos Deuses Maiores,
Intermediários, Menores, Semideuses e Quase Deuses. Note que essas duas últimas
estão incluídas como uma só no Livro do Mestre da 5ª edição. Qual a relevância
dessa separação, caso você use? É apenas algo hierárquico? Tem a ver com
quantos mortais prestam culto ou orações à divindade? Quais dessas divindades
serão capazes de conceder magia aos sacerdotes e cultos? Mais do que regras,
são decisões suas que afetarão o seu cenário.
Se
os deuses não são todo poderosos, talvez signifique que um deus pode morrer. O
que acontece quando um deus morre?
Como os deuses poderiam morrer?
- Talvez exija algum evento especial. Alguma conjunção astronômica, ou algo que enfraqueça os poderes divinos como a destruição de uma pedra fundamental da criação ou uma tábua sagrada onde foi escrito o acordo entre os deuses.
- Talvez apenas uma divindade, ou um ser de poder similar, possa matar outra.
- Talvez com o uso de algum artefato, que é um item mágico absurdamente poderoso, muito acima de qualquer item lendário e que nenhum mortal é capaz de construir de forma consciente.
- Talvez divindades que tenham sido aos pouco esquecidas e não mais veneradas fiquem fracas o suficiente para serem mortas. O que remete a outras questões: a força de uma divindade é relativa ao quanto é venerada? E a veneração é sempre um amor leal e fiel, ou pode ser medo ou respeito?
A
quantidade de decisões a respeito de seus deuses não é pequena nem são decisões
simples.
A FÉ E A FIDELIDADE RELIGIOSA
Há
um enorme número de fiéis que veneram os deuses, e a maioria deles o faz sem
receber magias em troca. Alguns inclusive talvez trabalhem nos templos e
capelas, ou façam peregrinações e reservem parte do seu dia para atividades
religiosas. Mas o que acontece quando não se tem fé? Essa é uma primeira
questão.
As
respostas são inúmeras. Talvez seja impossível ressuscitar sem ter fé. Os
deuses podem não permitir o retorno de uma alma descrente. Ou talvez isso
ocorra após uma espécie de julgamento pelos deuses ou por uma divindade
específica (ou algum servo dessa divindade). Talvez determinados itens mágicos
ligados a fé não funcionem nas mãos de apostatas e descrentes. Em cenários mais
radicais, talvez nem mesmo curas mágicas vindas de clérigos e outros emissários
dos deuses funcionem.
Outra
questão é o que acontece quando um clérigo troca a sua divindade?
Esse
sacerdote é caçado? Ele é visto como alguém que não tem fé pela nova divindade?
E pela igreja? Como é feito? Há testes?
Quando
um clérigo comete algum tipo de pecado, o que acontece?
Pode
ser que dependa do pecado, com pequenas transgressões sendo pagas com
penitências, jejuns, doações, flagelamento, peregrinação ou outras ações mais
simples de se resolver. Grandes transgressões talvez exijam grandes
sacrifícios, fazer um trabalho perigoso para a igreja e pode até mesmo
acarretar em perder parte dos poderes temporariamente até que a penitência seja
cumprida e o sacerdote esteja livre de seus pecados.
CADA DIVINDADE E A ESTRUTURA ECLESIÁSTICA
Após
decidir o conjunto de informações sobre o seu panteão, você passa a uma nova
etapa: a criação dos deuses.
Cada
divindade tem características únicas, mas juntaremos aqui algumas coisas
básicas que você deveria definir ao criar seus deuses.
Características da Divindade
Aqui
você definirá o alinhamento da divindade, os portfólios, as relações com as outras
divindades, o domínio ou os domínios que seus clérigos podem usar, se ela
possui alguma divindade suserana ou vassala, se ela é conhecida por diversos
nomes, quais os seus inimigos, seu símbolo sagrado e quais alinhamentos
possíveis de seus clérigos (o que pode ser todos, apenas bons, apenas caóticos,
todos que não sejam malignos ou o que você achar coerente com a divindade e com
o seu cenário).
História e Comportamento da Divindade
Aqui
você definirá uma breve história da divindade, tendo como base também o que foi
definido na sessão anterior, e como ela se comporta. Ela é ciumenta? Irascível?
Pacifista? Como ela criou inimizade com outra divindade ou entidade poderosa?
Manifestações no Mundo
Como
ela costuma se manifestar? Ela usa a forma de algum animal (talvez ela apareça
como um pássaro verde para sinalizar uma boa decisão de um devoto)? Ela utiliza
de sonhos ou pesadelos? Eventos climáticos?
Dogmas
Quais
as crenças relacionadas a sua divindade? Ela exige que sempre ajude os
necessitados? Que nunca dê as costas a um pedido de ajuda? Que sempre sirva
como guia em viagens? Que nunca trapaceie numa negociação? Que nunca diga uma
mentira? A lista de dogmas é muito grande e cada divindade pode ter muitas.
Pense rapidamente na lista de mandamentos do cristianismo e você perceberá que
há muitas regras que podem ser exigidas de seus fiéis (e que podem trazer
penalidades conforme dito anteriormente em caso de desrespeito a um dogma).
Esses dogmas podem afetar inclusive nas magias possíveis. Talvez um sacerdote
do deus da cura não possa causar doenças, ou um sacerdote da deusa da morte não
possa ressuscitar ninguém.
A Igreja
Esta
sessão é muito importante para a construção de seu mundo e para a criação de
clérigos pelos seus jogadores. Quais os componentes da igreja? Uma divindade da
guerra talvez tenha soldados, guerreiros, paladinos e cavaleiros entre seus
membros. Uma divindade da agricultura talvez tenha fazendeiros entre os membros
da igreja. E quais as vestes dos sacerdotes? Há restrição de roupas dos fiéis?
Há algum tipo de restrição ou de preferência de raça ou gênero? Talvez apenas
mulheres subam na hierarquia da igreja da deusa da cura, ou apenas elfos possam
venerar o criador da raça.
Atividades Religiosas
Quais
os tipos de atividades religiosas são realizadas em homenagem a divindade?
Quais são organizadas pela Igreja e quais são feitas pelos devotos de forma
íntima? É esperado algum tipo de doação de tempos em tempos? Quais os dias
sagrados?
Grande Templos
Quais
os principais templos da fé? Isso pode parecer pouco importante, mas um jogador
pode precisar ir a um templo grandioso em busca de ajuda para regenerar a mão
de um ladino ou a língua de um bardo, nunca se sabe. E a existência de um
templo enorme na cidade pode influenciar em toda a vida naquela região. Alguma
divindade compartilha templo com outra em algum caso ou de forma constante?
Ordens Religiosas
Quais
as ordens religiosas? Talvez a divindade da magia tenha uma ordem com
conjuradores arcanos (com algum tipo de subclasse relacionada), talvez a divindade
da música tenha uma escola de bardos e menestréis, talvez haja uma ordem
monástica em determinada igreja (mais uma vez, talvez a deusa da escuridão
tenha uma ordem monástica de monges das sombras) e possivelmente muitas igrejas
possuem ordens de cavaleiros para defesa ou ataque, afinal, é um mundo
fantástico com diversas ameaças. Se existem paladinos nessas ordens, quais os
juramentos são permitidos? Mais uma vez essa é uma questão que pode interferir
nas escolhas de seus jogadores.
CRIATURAS MÁGICAS
Por
fim, cabe saber qual a relação de cada divindade com as criaturas mágicas do
cenário. Quais as divindades aceitam a existência de mortos vivos? É bem
provável que o uso de magias que criação de mortos vivos sejam proibidas
conforme os dogmas da divindade, ou sejam incentivadas. O uso de magias para
conjurar criaturas sobrenaturais também pode ter vetos.
A
relação com os mais diversos tipos de criaturas, de gigantes a dragões, de
demônios a elementais pode ser comum, incomum ou tabus para esta ou aquela
divindade.
FINALIZANDO
O
trabalho de um Mestre que decide criar seu próprio cenário pode ser mesmo
imenso! Provavelmente seus jogadores nunca tocarão em grande parte disso, mas criar
tudo isso provavelmente é parte da sua diversão, já que você decidiu por criar
seu cenário ao invés de pegar um pronto. Assim, esperamos que esse breve guia
te dê um norte sobre como fazer a criação de seu panteão.
Se
você quiser ler um pouco mais sobre religiosidade em D&D nesse artigo de
Jason Nelson que traduzimos AQUI.
Bons
jogos!