DE PAI PARA FILHA - UM CONTO SOBRE MAZTICA

 





DE PAI PARA FILHA


Por Rafael Castelo Branco de Oliveira Torres 


Dacei e Itzel estavam sentados na areia olhando as ondas quebrarem nos rochedos. Dacei seguia incomodado com o que Itzel havia lhe dito na noite anterior. Aquela história não estava sendo contada como deveria, ele pensou. Foi quando se dirigiu a filha.

 

Sabe, minha filha. O que você ouviu em Ulatos não tem quase nada de verdadeiro sobre a nossa história. Os descendentes dos invasores que vivem em Porto de Helm ainda nos tratam como um povo só. Incapazes de diferenciar um azupozi de um nexalano, eles ainda se encantam mais com nossas gemas verdes, vermelhas e amarelas, do que apreciam nossos talismãs. Até hoje insistem em não aprender direito os idiomas falados aqui e insistem no de seus antepassados, enquanto nós aprendemos os deles e os nossos. São ignorantes. Por isso contam histórias como se eles tivessem nos salvado, quando fomos nós quem os salvamos.

 






Quando eles desembarcaram, nós tínhamos sido avisados. Dez sinais surgiram, e mesmo que alguns em Nexal os ignorassem, nossos sábios de Payit Distante sabiam que eles viriam em busca das riquezas que pudessem levar. Não só os minerais, mas a baunilha, o café e o cacau. As palavras de nossos sábios eram como as estrelas de onde nossos deuses vieram, e brilhavam naquela época como brilham hoje.  Estrelas que eles não compreendem. Medimos o tempo da colheita do milho e dos grãos com precisão. Sabemos quando vem o frio e o calor. Muito antes deles chegarem, já conversávamos e negociávamos com povos que a maioria deles nunca ouviu falar, porque desde antes do império de Nexal nós já tínhamos contato com estrangeiros vindos de muito longe. Mas eles pensam que nos descobriram. Desculpe, estou divagando.

 

O ouro, as gemas, os grãos, as favas, nada disso pertence a nós ou a eles, sabe? Assim como o ar ou a água não pertencem a ninguém, a não ser ao próprio mundo. Cada gota de água é sagrada, assim como cada pedra, reluzindo ou não. Cada árvore é viva e tão dona deste mundo quanto cada beija-flor, cada onça, cada truta, cada formiga. Todos são sagrados.

 

Os invasores não entendem nossa cultura, minha filha. Para eles, todos nós sacrificamos nossos irmãos em altares nas pirâmides para ver o sangue derramado, como selvagens. Não diferenciam um ritual ao maldito Zaltec e seus irmãos cruéis, como os sacrifícios hediondos realizados em Nexal, a um banquete de frutas oferecido a Watil. Eles nem enxergam Kiltzi, Eha ou Nula, apesar de suas criações estarem a todo tempo diante de seus olhos. Para cada morte em nome de Zaltec, há mil oferendas em nome de Qotal, mesmo quando ele estava em silêncio, em nossas vilas e cidades. Nunca deixaremos de ser selvagens para eles. Selvagens! Como se entre eles não houvesse quem cultuasse entidades cruéis. Eu mesmo já ouvi nomes como Bhaal ou Myrkul sendo sussurrados e suas histórias contadas.  Os invasores também têm sua história de sangue e morte. E eles trouxeram com eles no fio da espada, nos atacando quando desejávamos conversar. Payit sempre foi um povo pacífico e eles se aproveitaram disso.  Eles, que se acham superiores, que se diferenciam orgulhosamente das demais formas de vida, enquanto sabemos que todos somos filhos da Montanha.

 





O que você ouviu, Itzel, foi dito pelos filhos dos invasores, que sequer sabem ouvir o idioma dos sapos ou das serpentes. Que não entendem a música das folhas e não enxergam o aviso da águia. Porque se escondem em seus abrigos e fecham os olhos e ouvidos. Falam muito e nada escutam.

 

Então houve o tempo do exílio, que os fez aceitar o destino de morar conosco, mesmo sem saber a diferença entre nós, sem entender nossas mágoas passadas, e nosso augúrio. Por sua arrogância, por não entender que nós sempre estudamos a vida, eles não procuraram nossa ajuda e seus cavalos morreram doentes ou devorados quando nossos anciões conheciam a cura para aquele mal e a proteção contra os predadores. Eles não entendiam que os cavalos são como nós, e os viam como servos. Eles sentiram sua partida como quem perde um colar, não como quem perde um filho.  Somos todos filhos da terra.

 






Pai, você sabe como foi a guerra?

 

Filha, os avós de meus avós estavam vivos quando eles chegaram, e a história vem sido recontada desde então. Quando a ambição dos invasores enfraqueceu Payit e matou tantos dos nossos, impedindo que todos enxergassem o futuro. Quando eles chegaram ao vale e derramaram o sangue de nexalanos, eles alimentaram o ódio que permitiu o nascimento da Mão de Víbora. E então caiu sobre nós a Noite do Lamento. O ódio aos invasores logo se tornou sangue derramado nos altares dedicados ao Devorador de Corações, que exigiu sangue de invasores e daqueles que não concordavam com a violência. E então o fogo e a fumaça explodiram o monte. E o povo de Nexal se transformou no ódio plantado pelos invasores e regado por Zaltec.

 

Itzel, compreenda: foi a ganância dos invasores que fez jorrar nosso sangue e o deles. E por isso os céus se tornaram metálicos e as estrelas mudaram de posição. Os invasores foram isolados de seus antepassados por um século, pois assim os deuses quiseram. Eles sujaram a nossa casa com nosso sangue, que escorreu para o solo e alimentou a terra num volume jamais visto nem mesmo pelo mais fanático sacerdote de Zaltec.






 

E então, após explorar nossas terras, sangrar nossos corpos e demonizarem nosso povo,  eles dizem que Cordell os salvou, e salvou nossa terra. Mas fomos nós que salvamos Cordell e os demais invasores. Quando as criaturas da Mão de Víbora chegaram, quando os elfos negros vindos da escuridão surgiram devido a hishna de Cordell, foram os guerreiros de Kultaka que protegeram os invasores. Foram os guerreiros de Payit que queimaram as bestas imortais da Mão de Víbora. Foram os anões do deserto que permitiram retiradas estratégicas. Foram pequeninos selvagens que furaram o couro dos orcs. Foi Qotal em seu esplendor que criou a fuga milagrosa. Para os invasores, foi seu líder que os salvou, pois não sabem enxergar. Enquanto isso, ontem, hoje e sempre, os espíritos dos nossos irmãos que lutaram ao lado dos invasores e morreram por todos nós habitam nossas terras. Eles caminham pelas florestas e se banham nos rios.

 

Minha filha, o ouro que nos levaram não pode servir de alimento, nem trazer nossos antepassados de volta. Tampouco os deles. Então cuidado ao ouvir as histórias que eles contam, pois eles não conhecem Maztica, não conhecem sua história, não conhecem a vida que está diante de seus olhos, não conhecem sequer a si mesmos. Agora eles habitam o Mundo Verdadeiro, mas dele nunca farão parte, porque não o entendem.







 

FINALIZANDO O TEXTO

 





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Bons jogos!

 


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